A emancipação feminina em um sistema social patriarcal e opressor ainda caminha a passos lentos na história recente da humanidade. A mulher ainda está longe de exercer a totalidade de seus direitos como cidadã e de existir plenamente como ser humano no mundo, e uma simples – porém devastadora – constatação disso é o fato de ter tão pouca autonomia sobre a forma mais particular da manifestação de sua existência: seu próprio corpo.
O corpo da mulher não é da mulher. Ele é do outro, é de todos. Ele parece ser um constante convite para que qualquer um se sinta no direito de opinar, criticar, sugerir, regular e tocar. Assim, faz-se a transposição do corpo da mulher da esfera privada para o domínio público, tornando-a suscetível às mais diversas formas de violência física e psicológica. Para ilustrar essa realidade, dois casos dilacerantes vieram à tona na semana passada, nos mostrando com riqueza de detalhes o que ainda significa ser mulher nos dias de hoje.
Primeiro, noticiou-se a história de uma menina de 11 anos que engravidou após ser estuprada e teve seu direito de aborto previsto por lei (art. 128 do Código Penal) negado pela juíza responsável pelo processo. A juíza decidiu manter a menina institucionalizada, ou seja, longe da família e da segurança do lar, para prolongar o tempo da gestação e inviabilizar o aborto. Ela praticou violência psicológica com a criança, tentou coagi-la a seguir com a gravidez para aumentar as chances de sobrevida do feto e invalidou completamente sua situação de vulnerabilidade ao afirmar que seu sofrimento poderia se tornar a felicidade de um casal que estaria buscando um bebê para adoção.
Como se não bastasse o estado de fragilidade em que essa criança se encontrava por conta de todo o transtorno causado por um estupro seguido de gravidez, ela ainda foi completamente negligenciada pelo sistema de justiça que deveria ampará-la em um momento tão difícil. A juíza agiu de forma indevida do início ao fim, colocando suas próprias crenças à frente do direito de escolha da menina. Ela finalmente teve acesso à interrupção segura da gravidez, mas nada poderá apagar todas as agressões vivenciadas ao longo desse doloroso processo.
Como desgraça pouca é bobagem, dias depois se tornou pública a situação de uma atriz de 21 anos que também foi violada por um estupro e também engravidou, mas decidiu entregar o bebê para a adoção por já ter descoberto a gravidez em um estágio muito avançado. Uma entrega que é prevista por lei (art. 19-A do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, incluído pela Lei nº 13.509, de 2017), garantindo à mulher o sigilo sobre o nascimento e a entrega do bebê. Ou ao menos deveria garantir, já que a história da atriz virou manchete após ter sido vazada por profissionais de saúde que a atenderam e publicada em todos os veículos de comunicação por colunistas de fofoca.
Mais uma vez, todo o sofrimento que essa mulher passou decorrente de um estupro seguido por gravidez foi absolutamente potencializado pela falta de ética dos profissionais de um sistema de saúde que deveriam acolher suas necessidades e respeitar sua vontade, pela conduta inescrupulosa dos colunistas que preteriram a privacidade da atriz ao engajamento do público e pelo fato de sua violência estar agora imortalizada nas páginas dos jornais, nas postagens das redes sociais e na memória de um país inteiro.
Esses são apenas dois tristes exemplos de que o corpo da mulher não lhe pertence. Ela é constantemente alienada de seus direitos mais básicos como ser humano, é podada por uma sociedade machista que controla seu potencial reprodutivo e, em última instancia, é destituída de seu próprio eu. Não trago nenhuma mensagem de esperança. Nenhuma luz no fim do túnel. Nenhum conforto no meio do caos. Trago toda minha solidariedade às vítimas dessas barbáries e toda minha revolta para continuar reivindicando pelo fim das correntes que nos aprisionam. Nenhuma mulher pode ser calada com tamanha violência. Seguimos lutando pelas nossas.
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